Em Escute as Feras, a antropóloga francesa Nastassja Martin reflete sobre o profundo contraste entre a visão de mundo dos povos indígenas da região de Kamchatka, na Rússia, e a perspectiva moderna ocidental, que tende a ver a natureza como separada e subordinada ao ser humano. Martin critica a falta de conexão e respeito pela natureza na sociedade contemporânea, propondo uma nova forma de perceber o mundo ao integrar uma visão animista, onde todos os seres vivos – animais, plantas e elementos naturais – possuem espírito e são parte de uma teia de interações. A partir de sua experiência traumática ao ser atacada por um urso durante uma expedição etnográfica, a autora oferece uma análise sobre como essa experiência transformou profundamente sua subjetividade e a forma como ela se relaciona com o meio ambiente.
O livro vai além de uma narrativa de sobrevivência, convidando o leitor a explorar as interconexões entre humanos e a natureza, unindo saberes tradicionais e modernos. Martin, ao descrever sua recuperação física e psicológica, nos conduz a uma introspecção mais ampla, envolvendo questões sobre identidade, espiritualidade e a busca por um sentido mais profundo nas relações com o mundo natural.
Sob a luz da psicologia junguiana, essa obra também pode ser vista como uma jornada de individuação – o processo de integração dos aspectos conscientes e inconscientes da psique, que, segundo Jung, é fundamental para a transformação pessoal e para o bem-estar coletivo. Ao mergulhar em uma realidade diferente da cultura ocidental, Martin nos mostra que o verdadeiro despertar ocorre quando nos conectamos não só com nossa interioridade, mas também com as forças da natureza que moldam e refletem nossa existência. Nesse sentido, Escute as Feras nos convida a uma reflexão profunda sobre a necessidade de reconectar o indivíduo ao mundo natural, promovendo uma transformação que vai além do sujeito, alcançando o coletivo e o meio ambiente.
Neste artigo, faremos uma análise da obra sob a perspectiva da psicologia analítica, explorando como o processo de individuação pode ser compreendido no contexto das mudanças climáticas globais e da relação intrínseca entre ser humano e natureza. O texto pretende provocar uma reflexão sobre como a cura de nossas feridas, individuais e coletivas, passa pela ampliação da consciência e pela integração das dimensões simbólicas e espirituais presentes no mundo natural.
“[…] Existe de fato aqui uma coisa diferente daquilo em que nós, no Ocidente, depositamos confiança. As pessoas como Dária sabem que não são as únicas a viver, sentir, pensar, escutar na floresta, e que outras forças operam em volta delas. Há aqui um querer exterior aos homens, uma intenção fora da humanidade. […] existe também a evidência de viver num mundo em que todos se observam, se escutam, se lembram, dão e retomam; existe ainda a atenção cotidiana a outras vidas que não a nossa; existe enfim a razão pela qual me tornei antropóloga.” (MARTIN, 2021, p. 76 e 77).
O relato do livro convida para o encontro com a manifestação de um tema arquétipo. Ao se permitir uma imersão em outra cultura e modo de viver completamente diferentes do seu, Martin é tocada profundamente ao acolher a alteridade do outro. Mas essa alteridade não se restringe apenas aos seres humanos com quem se relacionou e criou vínculos. Ela também se estendeu aos outros seres com que teve contato, seja o urso que a marcou, mudando sua vida por completo, seja os outros animais e elementos da floresta com quem aprendeu a se relacionar de modo mais significativo:
“[…] penso em todas essas histórias e em todos esses mitos que eu e tantos outros antropólogos transcrevemos cuidadosamente em nossas monografias sobre os povos que estudamos, em todas essas viagens de um mundo a outro que atiçam nosso interesse científico, em todos esses homens um tanto especiais, esses xamãs que perseguimos como os caçadores rastreiam os animais que os fascinam. Penso em todos esses seres que se embrenham nas zonas sombrias e desconhecidas da alteridade e que delas voltaram, metamorfoseados, capazes de encarar “aquilo que vem” de maneira não convencional, eles agem agora a partir daquilo que lhes foi confiado debaixo do mar, debaixo da terra, no céu, debaixo do lago, no ventre; debaixo dos dentes. (MARTIN, 2021, p. 99)
A nova conexão que se estabeleceu entre ela e o meio ambiente se mostrou mais viva do que antes. Seus sonhos constantes com os animais, os rios e a floresta e a forma como eles a impactaram falam de uma comunhão espiritual com a vida. A natureza estando presente em cada ato de sobrevivência cotidiana, na busca de alimento, nas tarefas para se proteger das intempéries, a fez se enxergar como apenas mais um ser vivente na floresta, lutando pela vida diariamente. Isso a fez refletir que estamos intrinsecamente ligados a natureza, mesmo os homens civilizados. Estes, no entanto, não compartilham da mesma consciência desta realidade como os povos ancestrais:
“Aqui é sempre assim, nada nunca acontece como se deseja, a coisa resiste. Penso em todas as vezes em que o tiro não dispara, em que o peixe não morde, em que as renas não avançam, em que a moto da neve engasga. É igual para todo mundo. Você tenta ter estilo, mas tropeça, se atola, claudica, cai, se levanta. Ivan diz que só mesmo os humanos acreditam que fazem tudo certo. Só os humanos dão tamanha importância para que os outros pensam deles. Viver na floresta é um pouco isso: ser um vivente em meio a tantos outros, oscilar com eles.” (MARTIN, 2021, p.101)
A visão antropocêntrica, que moldou sua existência até então, é profundamente alterada. Essa quebra de paradigmas a desorganiza, trazendo uma sensação de luto diante das antigas crenças que cultivava acerca da humanidade e do mundo. Sua consciência é ampliada. Martin se ajoelha diante das incertezas, em profundo respeito ao que lhe é infinitamente maior: o desconhecido. Essa noção a faz entender seu tamanho, abrindo outras possibilidades de pensar e sentir a vida:
“ao sair da no man’s land tão esperada da montanha desse glaciar do planalto de altitude, finalmente menos despovoada do que eu imaginava, só me restam poucas certezas. A estabilidade dos seres e das coisas me escapa, sua organização em sistemas inteligíveis e instituídos me foge, a possibilidade de sua perenidade no tempo me deserta. Meus “dados”, aqueles que eu tinha cuidadosamente coletado, aqueles cujas pontas eu tinha começado a juntar para criar um mundo – um mundo que eu gostaria de compartilhar com meus contemporâneos – jazem agora aos meus pés como tantos vínculos rompidos que, mais tarde, será preciso ordenar de outra maneira. Por quê? Porque é preciso poder viver mais além, como dizem todos aqueles que vivem aqui na floresta sobre o rio sob o vulcão. É preciso poder viver depois com diante disso; simplesmente viver mais além.” (MARTIN, 2021, p. 98)
A escrita de Escute as Feras nos ajuda a refletir sobre questões urgentes para a humanidade, especialmente em um momento de mudanças climáticas globais que já afetam drasticamente a vida na Terra. A falta de consciência da humanidade sobre nossa relação intrínseca com o meio ambiente tem gerado consequências irreversíveis para a vida de todos os seres do planeta, incluindo nós, humanos. Ao ler essa obra sob a perspectiva da psicologia analítica, podemos entender que as mudanças coletivas que tanto necessitamos começam pelo indivíduo. O processo de individuação, conforme proposto por Jung, é um movimento interior em que a pessoa se aproxima da totalidade de si mesma, integrando os aspectos conscientes e inconscientes da psique. Esse processo não é apenas uma jornada pessoal, mas um ato profundamente conectado ao coletivo, impactando não só o sujeito, mas a sociedade como um todo.
No contexto das mudanças climáticas, o processo de individuação pode ser visto como uma reconexão com a natureza interior e exterior. Assim como Nastassja Martin, que passa por uma transformação profunda ao integrar sua experiência com o urso e a floresta, somos convidados a integrar a natureza como parte de nós mesmos. A individuação nos ensina que não podemos viver dissociados do mundo natural, pois a harmonia com o meio ambiente reflete a harmonia interna. Portanto, o caminho para a cura das feridas que infligimos à Terra e a nós mesmos passa pela ampliação da nossa consciência e pela integração das forças da natureza na nossa psique. Somente ao nos transformarmos internamente, com respeito e reverência pelo mistério do mundo natural, poderemos caminhar em direção a um futuro mais equilibrado e sustentável para todas as formas de vida.
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