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Título

 “The Substance” e a Psique Feminina na Era da Pressão Estética

Autora
Dra. Luana Schuarts

Boa leitura.

O filme The Substance, de Coralie Fargeat, é um mergulho intenso na psique feminina e na complexa relação entre autoimagem, beleza e poder. Sob as lentes da psicologia analítica e da psiquiatria, ele revela uma verdade perturbadora: a luta das mulheres contra padrões inatingíveis de perfeição não é apenas cultural, mas profundamente psicológica, enraizada em arquétipos e reforçada por pressões externas que muitas vezes levam a graves transtornos mentais.


Os Arquétipos da Jovem e da Velha na Psicologia Analítica

Na narrativa do filme, os arquétipos da Jovem e da Velha emergem como forças simbólicas que moldam o confronto entre juventude e envelhecimento, idealização e decadência.

A Jovem

Representando vitalidade, beleza e potencial, o arquétipo da Jovem é explorado no filme como um ideal inalcançável que exige sacrifício e destruição. Ela é a imagem que a sociedade idolatra: a mulher perfeita, jovem, magra, eternamente desejável. No entanto, essa idealização cobra um preço, levando à alienação de partes autênticas da psique feminina em favor de uma persona moldada por expectativas externas.

A Velha

Por outro lado, o arquétipo da Velha simboliza sabedoria e transformação, mas também a rejeição da sociedade àquilo que não se conforma com o padrão de juventude eterna. Em The Substance, a Velha é tanto temida quanto necessária, representando a força que confronta a obsolescência da beleza física e o inevitável declínio do corpo.

Esses dois arquétipos se enfrentam e se complementam no filme, refletindo a tensão entre a energia vital e a sabedoria reflexiva. É como se o enredo nos perguntasse: “Podemos nos transformar sem destruir partes de nós mesmos?”


A Psiquiatria e a Pressão Estética

Sob a perspectiva psiquiátrica, The Substance toca em questões fundamentais relacionadas a transtornos mentais mais prevalentes em mulheres, especialmente aqueles ligados à autoimagem e à pressão estética. A narrativa expõe como a busca pela perfeição pode alimentar uma série de condições que não apenas afetam a saúde mental, mas também a identidade feminina.

Transtornos Alimentares: Anorexia e Bulimia

A obsessão pela magreza, frequentemente reforçada por padrões de beleza irrealistas, está no cerne de transtornos como anorexia e bulimia nervosa. No filme, a “substância” que consome a protagonista pode ser vista como uma metáfora para a relação destrutiva entre as mulheres e seus corpos, em que a busca pela perfeição física corrói tanto o físico quanto o psíquico.

Dismorfia Corporal

A percepção distorcida da própria aparência, característica da dismorfia corporal, também é uma narrativa implícita em The Substance. A protagonista parece perseguir incessantemente uma imagem de si mesma que nunca está completa ou satisfatória, ecoando a experiência de muitas mulheres que vivem aprisionadas pela obsessão com imperfeições percebidas.

Vício em Procedimentos Estéticos

A substância que transforma (e destrói) no filme reflete a relação simbiótica, e muitas vezes destrutiva, entre a indústria da beleza e as mulheres. O vício em procedimentos estéticos — seja para manter a juventude ou alcançar padrões irreais — é um fenômeno crescente, associado a baixa autoestima, ansiedade e depressão. Mulheres que recorrem a esses procedimentos frequentemente buscam preencher lacunas emocionais que não podem ser resolvidas apenas pela aparência física.

Ansiedade e Depressão Ligadas à Baixa Autoestima

A pressão constante para estar “dentro do padrão” pode levar a crises de ansiedade e episódios depressivos, especialmente quando há uma desconexão entre a imagem idealizada e a realidade. O filme captura esse sentimento de inadequação, mostrando como o desejo de transformar-se pode se tornar um ciclo de destruição interna, marcado por uma luta interminável por aceitação.

O Antienvelhecimento e a Fobia do Tempo

A pressão para permanecer jovem a qualquer custo reflete uma rejeição cultural ao envelhecimento, que é vivido por muitas mulheres como uma perda de valor social e pessoal. Essa “fobia do tempo” se manifesta em comportamentos obsessivos e transtornos que reforçam a desconexão entre corpo e mente.

The Substance e Mulheres que Correm com os Lobos: Uma Reflexão sobre a Essência Feminina

O filme The Substance, dirigido por Coralie Fargeat, e o livro Mulheres que Correm com os Lobos, de Clarissa Pinkola Estés, compartilham uma temática central: a jornada feminina em busca de sua essência e autenticidade. Ambos trabalham com arquétipos profundos e confrontam questões universais que atravessam o feminino, como a perda de conexão com a própria natureza instintiva, os desafios impostos pela cultura e a necessidade de transformação interna para alcançar plenitu

A Dissociação do Feminino e o Resgate da Inteireza

Em The Substance, Elizabeth e Sue representam uma cisão interna que muitas mulheres experimentam em uma sociedade que as fragmenta. Essa dissociação reflete a perda do contato com a essência selvagem e instintiva descrita por Clarissa Pinkola Estés, que aponta como a cultura contemporânea desconecta as mulheres de sua natureza autêntica.

No filme, as duas personagens não apenas se enfrentam, mas também vivem aprisionadas por expectativas externas que as desumanizam e as distanciam de sua completude. Esse conflito interno é um reflexo da condição feminina descrita por Estés: ao se afastarem de sua “Mulher Selvagem” — a parte intuitiva, instintiva e criativa —, as mulheres frequentemente se tornam presas de narrativas externas que limitam seu potencial.

A Propaganda Neoliberal e a “Domesticação” da Alma Feminina

Um ponto central tanto no filme quanto no livro é a crítica às forças culturais que moldam a psique feminina. Enquanto Mulheres que Correm com os Lobos explora como a domesticação da alma selvagem leva ao empobrecimento emocional e espiritual, The Substance critica a propaganda neoliberal que oprime as mulheres ao promover uma busca incessante pela “melhor versão de si mesmas”. Essa estética idealizada não apenas aliena as mulheres de seus corpos reais, mas também as força a abandonar partes vitais de si mesmas em troca de aceitação social.

Elizabeth e Sue são o reflexo dessa opressão: vivem divididas entre a promessa de perfeição externa e o vazio interno que isso provoca. Essa desconexão ecoa o alerta de Estés sobre os perigos de sucumbir à “cultura da superfície”, onde a profundidade e a autenticidade são sacrificadas em prol de uma aparência cuidadosamente fabricada.

O Luto pela Juventude e o Cultivo da Substância Interior

Tanto no filme quanto no livro, há um chamado para que as mulheres enfrentem as perdas inevitáveis da vida — incluindo o luto pela juventude — como um passo essencial para o amadurecimento. Em The Substance, o vazio deixado pela negação desse luto se manifesta como sentimentos de ódio, inveja e ressentimento, que frequentemente é preenchido por “substâncias” externas, como obsessões estéticas, cirurgias ou consumos compulsivos. Já o livro de Estés aponta que a aceitação dessas transições é o que permite que as mulheres se reconectem com sua essência e encontrem força na sabedoria do tempo.

Estés sugere que, para superar esses períodos de transformação, é necessário cultivar uma vida interior rica e significativa. Essa ideia é representada no filme pela metáfora da “substância interior”, que contrasta com a busca externa por “substâncias” paliativas, sejam elas estéticas, químicas ou emocionais. Ambas as obras enfatizam que a verdadeira maturidade e plenitude só são alcançadas por meio da integração das experiências e do cultivo de uma conexão profunda com a alma.

A Jornada de Retorno ao Selvagem

No coração de Mulheres que Correm com os Lobos está a jornada do retorno ao selvagem — o resgate da mulher intuitiva, criativa e conectada consigo mesma. The Substance aborda essa jornada de forma simbólica, mostrando como Elizabeth e Sue precisam reconciliar suas partes dissociadas para encontrar harmonia. Assim como o livro de Estés enfatiza que a reconexão com a “Mulher Selvagem” é um processo doloroso, mas transformador, o filme mostra que o reencontro com a essência feminina exige enfrentar conflitos internos e romper com padrões impostos.

Conclusão: Um Chamado à Autenticidade

Tanto The Substance quanto Mulheres que Correm com os Lobos são, em última análise, convites para que as mulheres reconquistem sua autenticidade. Ambas as obras desafiam os paradigmas culturais que fragmentam e enfraquecem o feminino, oferecendo em troca a promessa de inteireza e força interior.

Enquanto o filme expõe as pressões contemporâneas de forma visceral, o livro fornece uma base mitopoética para compreender esses desafios. Juntas, essas narrativas nos lembram que a verdadeira substância feminina não pode ser encontrada na aprovação externa, mas no mergulho profundo na alma, onde reside a sabedoria, a força e a criatividade inatas de cada mulher.

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