Há filmes que passam despercebidos e há filmes que nos atravessam em silêncio. Meu Nome é Chihiro (2023), dirigido por Rikiya Imaizumi, é um desses encontros raros entre o cotidiano e o essencial. Baseado no mangá de Hiroyuki Yasuda, o longa acompanha uma mulher que já foi acompanhante e agora trabalha em uma pequena loja de bentôs à beira-mar. Mas não se trata de redenção ou julgamento. É um retrato poético da vida como ela é: impermanente, solitária e bela. O filme tem uma profundidade filosófica que dialoga com aspectos do budismo, da impermanência, da solidão e da busca por significado na vida.
1. A Impermanência e a Aceitação do Passado (Anicca)
No budismo, a impermanência (anicca) é um dos três selos da existência. Nada permanece igual para sempre, e aceitar essa transitoriedade é essencial para o crescimento pessoal e a libertação do sofrimento. Chihiro não se apega ao seu passado como acompanhante, nem carrega culpa ou arrependimento. Ela simplesmente aceita sua história como parte de quem é, mas não se define por isso. Essa postura reflete um ensinamento budista: o passado é uma ilusão, e o presente é tudo o que temos.
Ela também não julga as pessoas com base em suas histórias passadas. Sua relação com os outros personagens, como a menina solitária ou a senhora idosa, é marcada por empatia e aceitação, sem tentar mudá-los ou questionar suas escolhas de vida.
2. A Solidão e a Liberdade
Chihiro parece confortável em sua solidão, mas sem cair no isolamento emocional. Ela não tem um “lar” fixo, nem um círculo social convencional, mas isso não a faz sofrer. No budismo, a solidão pode ser vista como um estado de liberdade: desapego dos rótulos sociais e das expectativas externas.
Sua relação com as pessoas é livre de posse ou apego. Ela se conecta com aqueles que cruzam seu caminho de maneira leve, mas significativa, sem criar dependências emocionais. Isso lembra o ensinamento budista de que as relações não devem ser baseadas no desejo de controle ou posse, mas sim na compaixão e no respeito mútuo.
3. A Vida como um Fluxo: Wu Wei e a Espontaneidade
Chihiro não tem um “plano de vida” fixo. Ela segue o fluxo, lidando com os desafios conforme surgem, sem resistência. Essa abordagem ressoa com o conceito de Wu Wei, do taoísmo (que também influencia o budismo Zen), que significa agir sem esforço, fluir com a vida em vez de lutar contra ela.
Ela não tenta forçar mudanças na vida dos outros, nem busca um propósito grandioso. Ela simplesmente vive o presente com consciência e leveza, o que, paradoxalmente, torna suas interações profundamente impactantes.
4. A Simplicidade e a Valorização do Momento Presente
O budismo ensina que o contentamento vem da simplicidade e da gratidão pelo agora. Chihiro não busca status, riqueza ou reconhecimento. Ela encontra prazer em pequenos momentos, como conversar com um estranho, saborear uma boa refeição ou sentir o vento no rosto.
Ela não está preocupada com um “grande futuro”, mas vive cada experiência de forma plena, sem pressa para chegar a algum destino. Essa postura lembra muito a prática budista de mindfulness (atenção plena), onde cada ação cotidiana se torna uma forma de meditação.
5. A Redenção sem Julgamento
Diferente de muitas histórias sobre “redenção”, onde o protagonista busca corrigir erros do passado, Chihiro não parece ver sua antiga profissão como algo que precise ser “corrigido”. Ela não se envergonha nem tenta “provar” que se tornou uma pessoa melhor. Isso reflete a ideia budista de que o arrependimento excessivo e a culpa são ilusões do ego—o que importa é como vivemos agora.
A melancolia de Chihiro em algumas cenas do filme parece estar profundamente ligada à consciência da transitoriedade da vida, ao mesmo tempo em que carrega uma aceitação silenciosa dessa condição. Em vários momentos, vemos Chihiro contemplativa, olhando para o mar, sentada em silêncio, ou deixando escapar um leve sorriso melancólico. Essa melancolia não parece ser uma tristeza destrutiva, mas sim uma sensação de estar à margem do mundo, observando a vida com uma mistura de curiosidade, aceitação e talvez um certo desapego.
6. A Melancolia como Reflexo da Impermanência
No budismo, há um conceito chamado “mono no aware”, que vem da cultura oriental e significa uma sensibilidade à impermanência das coisas, um reconhecimento da beleza e da tristeza que existe na passagem do tempo. A melancolia de Chihiro parece vir dessa intuição de que tudo muda, tudo passa—as pessoas entram e saem da vida dela, os momentos bons e ruins são passageiros.
Por exemplo, quando ela conversa com alguns personagens e compartilha momentos de conexão genuína, há um ar de efemeridade nessas interações. Ela sabe que esses encontros não durarão para sempre, e talvez seja isso que traga um certo tom de melancolia às suas expressões.
7. O Desapego como Fonte de Solidão
Chihiro não se apega às pessoas ou lugares, e isso pode trazer uma solidão existencial, mesmo que ela não pareça sofrer com isso. Diferente de muitos personagens que buscam um pertencimento, ela parece confortável em ser uma espécie de “passageira” na vida dos outros. No entanto, isso também significa que ela não tem um lar fixo, um laço profundo e permanente com ninguém.
É como se ela soubesse que tudo é passageiro, mas ainda sentisse um certo vazio ao perceber essa realidade. Esse sentimento pode ser comparado à solidão dos monges budistas, que renunciam aos apegos mundanos, mas ainda assim experimentam momentos de melancolia ao perceberem a vastidão e a transitoriedade da vida.
8. A Melancolia da Compaixão
Chihiro é uma personagem profundamente empática. Sua melancolia também pode ser um reflexo da dor que ela vê nos outros. Ela não julga, mas percebe o sofrimento das pessoas ao seu redor—o menino solitário, a senhora idosa, aqueles que vivem vidas vazias. Sua melancolia pode vir dessa percepção de que a vida é dura para todos em algum nível, e que nem sempre há algo a ser feito para aliviar esse sofrimento.
No budismo, existe um conceito chamado “karuṇā” (compaixão profunda), que é um estado de perceber a dor do mundo sem tentar “corrigi-la” compulsivamente, apenas aceitando e oferecendo presença. Chihiro parece carregar essa compaixão silenciosa, e isso pode contribuir para o seu ar melancólico.
9. A Tristeza Como Algo Natural e Aceitável
Diferente da cultura ocidental, onde muitas vezes tentamos evitar ou suprimir a tristeza, a cultura oriental tem uma relação mais natural com a melancolia como parte da vida. Chihiro não tenta fugir desse sentimento—ela o vive, sem exagero, sem desespero. Essa atitude se conecta com a ideia budista de que a tristeza também faz parte da experiência humana e não precisa ser rejeitada.
No final, sua melancolia não é um peso, mas uma forma de estar no mundo de maneira sensível e consciente. É um tipo de tristeza suave, não destrutiva, que acompanha aqueles que enxergam a beleza da vida, mas também sua fragilidade.
Conclusão: Uma Jornada de Iluminação?
Embora “Meu Nome é Chihiro” não seja um filme explicitamente budista, sua protagonista encarna muitos princípios dessa filosofia: aceitação do passado, presença no agora, desapego, compaixão e leveza na vida. Sua jornada não é sobre “chegar a algum lugar”, mas sobre se abrir para a experiência da vida como ela é—algo que lembra muito a busca espiritual do budismo.
O filme nos convida a refletir: será que precisamos de um propósito definido, ou apenas de uma mente aberta para viver plenamente?
Dra. Luana Schuarts
CRM 38301 | RQE 28408
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